terça-feira, 11 de maio de 2010

Dona Umbelina | Conto

Dona Umbelina era orelhas despertas pela manhã…
Mal o sol lambia o betão indefinido de construções a nascente, logo se colava à janela, ou à porta da varanda da sala.
Nada tinha que fazer.
Enviuvadamente assumida e cusca por profissão, deixava escorrer lazeres, de ouvido pregado ao tecto, à rua, ou ao rés-do-chão.
Falas apagadas, ou histéricos gritos que andares transpiravam, eram tema de conversa.
Com amigas de chá das cinco, triangulando trajectórias que toda a rua abarcava, tontas deambulavam como mosca atrás de monturo por toda a cidade acima.
…Tão longe, que o ser ou não ser, era um talvez, já pintado em pesadas cores grafitadas na mais branca e esfíngica parede.
Teceduras de brocados ou teias urdidas por desleixadas aranhas, as palavras abertas ao vento, varriam folhas imaculadamente verdes que previamente avermelhavam de vergonha, acastanhavam de desespero e apodrecidamente eram calcadas pela sociedade ensandecida que no boato acreditava sem acreditar na vida.
No bafiento sopro da palavra desatada à rebelia, sem pudor, destemperada e envenenada como seta, casamentos abalaram, sociedades caíram, amizades soçobraram e relações paternais ruíram.
Era um sismo não mensurável na escala de Richter, mas umbelinamente provocado como marabunta desenfreada que roía sentimentos e valores à passagem, semeando o pânico das sombras lançadas em pleno meio-dia.
A cidade agitava asas de gaivota em mar de tempestade, os habitantes comentavam o que não sabiam, as autoridades sem pistas palpáveis recomendavam calma, os jornais e revistas vendiam o inexplicável e Dona Umbelina ria…
Ria tanto, que as lágrimas se transformavam em riachos insondáveis que alagavam as margens do bom senso e criavam inundações de imbecilidade.
Os animais, como barómetros prevendo tempestade, viravam-lhe a cauda. E quem não consegue falar com animais, também não fala com gente. Porque animal é gente, só que sociabiliza de outra maneira. E um cão que reumaticamente passava, levantando despudoradamente a perna, resmungou caninamente presente um indiferente latido e, com traumático orgulho, pisou em abandono o asfalto que se perdia em reverberantes calores pela estrada sem destino, ou predestinadamente escolhida, quem sabe!
Dona Umbelina, perdida de incompreensão, levou as mãos à cabeça em evacuação de inconformada raiva, mais irada que raiva que cão não tinha. E sumiu na tarde, pintando a cabeça de negro de intenções que iam fervilhando no carvão do coração mirrado e queimado de folhas escritas em obscura caligrafia.
Ao entrar em casa transpirava revolta, daquelas que a alma, se existe, não contém; perdendo-se em penumbras de vingança, apontou dedolarmente a mercearia da esquina.
Comércio local, onde as moscas partilhavam mercadoria que o freguês comprava e o cheiro a bacalhau demolhado, lembrava defunto afogado devolvido à areia dois meses passados. E telefonicamente denunciou no teclado as incúrias à cúria que mais desasamentos aplicava.
Pouco tempo bastou para que a pacata rua se enchesse de sirenes rebocadas por carros policiais clamando por vingança às normas postuladas.
A mercearia virou cartel em tempo activo de droga, por mãos de indivíduos armados de capuzes e escondidos por armas, que pistolavam, ou metralhavam, se incompreendidamente entendidas pelo espanto ou falta de cooperação.
Latas de sardinhas em conserva, bifes do vazio, gomas que os miúdos adoravam e arroz carolino, sem falar no esparguete, foram revirados, esventrados, espalhados e calcados no chão de tijoleira que ainda brilhava de produto anti-séptico. Até a sanita, na sua digna displicência, passou pela humilhação de não servir os intentos para os quais estava destinada, tendo sido arrancada da parede e esmiuçada no seu auto (crismo), nada revelando das traseirices e peças adjacentes com quem partilhava assento todos os dias.
Imoral da história: o bacalhau era o culpado, o infiel amigo de demolhos esquecidos, foi considerado o réu que pagou multa de fechar porta.
E o comércio local, já perdido na procura, perdeu-se na oferta do esquecimento!...
Quem não foi esquecida foi Dona Umbelina.
Em missiva de registo postal ostentatório iniciada em A e acabada em E com pontos à mistura e coleante serviço em serpentino S, alheia a abecedários desnecessários, foi convidada a cuscar em lugar de destaque no topo da rua, da cidade e do poder…
Perante as amigas, em sorvedouros de chá das cinco, gaba-se de nunca ter fumado em casino ou avião!...
Junto à porta da casa, o cão do asfalto, alçava a pata em líquido cumprimento.


Fernando Magalhães

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