terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Cartaz da Paz | Lions Clube de Vila do Conde

Cartaz da Paz | Lions Clube de Vila do Conde
Vencedor a nível local
EdgarJosé Cerqueira Lopes
AVEJ | Escola EB 2.3 Dr. Carlos Pinto Ferreira | Junqueira - Vila do Conde


O Cartaz
O projecto consistiu em criar um círculo de mãos dadas simbolizando a ligação entre todos os países, religiões e raças.
A palavra Paz aparece no centro do cartaz em várias línguas e dialectos do Globo.
Quatro figuras de criança complementam a organização do cartaz.
O vencedor recebeu um prémio, simbólico, como foi dito ontem pela Governadora Lucinda Fonseca, na entrega do mesmo.

O professor orientador da turma 6ºC,
Fernando Magalhães.



Consulte também junkeira.blogspot.com

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Conto de Natal


Um luar de prata banhava o caminho sinuoso de sombras que se recortavam como agulhas e corações deformados, agitados e perturbadores na vereda de terra batida.

Transmitiam movimento aos contornos delimitados por fragas e muros silenciosamente expectantes na noite.

Um recorte figurativo, alongado e neutro, deslizava ao acaso em passos pesados que arranhando a gravilha e ferindo o silêncio, despertaram o voo surdo de uma coruja, que como folha embalada pelo vento e descrevendo descendentes espirais, acabou pousada, incerta e apagada, na estrangulada curva do caminho.

Pedreiro solitário da terra, trabalhando nas fraldas da serra, palmilhava normalmente aquele percurso que atalhava o tempo até casa.

Aí, nada de novo o esperava.

Apenas a vontade de se sentar, junto à lareira, que acendia e ateava o fogo da lembrança da mulher que perdera, de incompreensível doença, que explicações doutoradas nunca o fizeram entender.

A aldeia onde habitava tinha deixado de o ser.

As casas, moribundas, sucumbiam na carência de presença humana.

Perdida no tempo, despejava no espaço ruínas de xisto e terras de silvas e estevas, que noutras épocas tinham sido fartas em cultivo e vida de sonoras gargalhadas já esbatidas no nevoeiro das passadas vindimas, desfolhadas, bailaricos e festas ao santo padroeiro.

O piado sibilado e lamentoso da coruja soou como carpideira em dia de funeral.

Mas José não ouviu apenas aquele som que soprava, qual gélido vento, cristais de neve: um outro lamento, chorava como um balido, entrecortado e soluçante, sumido na solidão impenetrável que a prenha lua tentava suavizar.

Retirando do bolso uma pequena lanterna, apontou o amarelado foco para as sombras mais fechadas da vegetação onde a claridade lunar teimosamente não penetrava.

Conduzindo os passos, de ouvido atento à mais pequena sonoridade, resvalou em pedras, enredou-se em urze, tropeçou em raízes, feriu-se em tojo correndo o mais que podia ao encontro do débil sussurro.

A lanterna soltava círculos trémulos e incertos esquadrinhando negrumes de cerradas vegetações fechadas como asas de corvo em torno da pálida lâmpada.

O gemido foi mais forte e a lanterna subitamente suspendeu o seu bailado e apontou para uma pequena forma que se agitava no meio de fetos envolta num pequeno cobertor.

Apressando mais o passo, José descobriu uma criança quase recém-nascida, que num alegre suspiro lhe estendia os pequeninos braços.

Agarrou-a, apertando-a bem de encontro a si, lançando-se ribanceira acima a caminho de casa.

- Que ser humano insensível e mau poderia ter tido a coragem de deixar exposta ao frio, aos animais selvagens e à fome, assim, uma criança! – Ia pensando, sem saber muito bem o que poderia fazer ou como cuidar dela. – Teria sido alguma mãe solteira com vergonha ou medo de retaliações da família? – Mas não se lembrava naquela terra esquecida e quase desabitada de qualquer jovem moça!... Seria de alguém de outra terra distante que a deixara ali?...

Perdido em conjecturas sem resposta, depressa chegou à pequena construção térrea, de granito e lousa que lhe servia de habitação.

A porta estava sempre aberta, já que qualquer um seria sempre bem-vindo na solidão estrangulada que lhe asfixiava a existência.

Entrou, depositando com todo o cuidado a criança num sofá descolorido e coçado em frente à lareira.

Foi acendê-la pensando em aquecer um pouco de leite para dar ao miúdo. De certeza estaria com fome!

Biberão não tinha, serviria uma colher?

Misturando jornais velhos, pinhas e madeira de eucalipto e oliveira, riscou acocorado um fósforo.

Inesperadamente todo o aposento se inundou de luz! Parecia-lhe um fogo de artifício que irrompendo de todos os cantos da casa soltava raios que explodiam de luminosidade cegando o olhar e incendiando os sentidos.

Voltou-se, fósforo na mão, lentamente a apagar-se e a queimar-lhe os dedos…

…Embalando ternamente o menino, sentada no sofá, fixando-o meigamente, descobriu envolta numa névoa celestial, como anjo rodeado de miríades de estrelas, a mulher!...

Aproximou-se, lento de espanto.

Enlaçando-a fortemente como portas que se fecham indestrutíveis no mesmo batente, perderam-se na saudade de um amor imortal.

Uma claridade irreal circundou-os.

Após aquela véspera de Natal, depois de muitas buscas, nos penhascos da perdida aldeia, nunca mais souberam do José…

Fernando Magalhães

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Projectos de Arquitectura 4












Casa Retorta - 2010 - Arq. Francisco Furtado em co-autoria com Arq. Fernando Magalhães

A moradia fica situada em plena zona rural do concelho de Vila do Conde.

Adaptada na sua objectualidade ao terreno, estabelece relações com a envolvente absorvendo através dos seus vãos envidraçados toda a luz natural e paisagem verde ainda existente.

A preocupação de criar um programa humanizado e fluído na sua divisão espacial interna em constante diálogo com o exterior, foi uma premissa constante neste estudo.

OVNI | Conto

Fernando Magalhães - Acrílico s/tela 50x80cm


Uma hora da manhã em tempo de Inverno.

O frio apertava como espartilho de gelo.

Passeava os cães nas dunas de uma praia do litoral norte.

As ondas batidas na areia investiam e retrocediam em cadências de sonoridades enroladas em seixos que arrastadamente se desvaneciam e novamente empurradas estralejavam em fúria varrendo o areal.

A tinta negra do céu espirrava trémulas chamas de estrelas.

Súbita e surdinamente os três cães rafeiros começaram a rosnar fixando as alturas do infinito.

Mandou-os calar sem obedecerem, enquanto um plangente uivo ia crescendo em trio de caninos acirradamente apontados para os astros.

Acompanhando o movimento focalizou uma luz brilhante que se aproximava lentamente.

O aeroporto ficava próximo, mas aquela luz azulnéon não se assemelhava a nenhum avião. Estaria com visões, seria mesmo uma aeronave em queda? Mas não se ouvia nenhum ruído de motor, apenas as ondas do mar!...

E cada vez se aproximava mais, lentamente, tão lenta como folha embalada por aragem de verão.

O silêncio, de tão pesado, feria o rumorejar do mar.

Os cães desapareceram, dunas fora, ganindo.

Pegou no telemóvel e de câmara apontada, fotografou a luz que redonda e ofuscante pairava sentada no ar como olho ciclópico estremunhando a madrugada.

Num estúdio de televisão o entertainer, em horário nobre, tentando vender o sharing de absorção imediatista, perguntou:

- Mas você viu um Ovni?

- Vi!

A orquestra soltou acordes gritantes de metais e percussões, ritmada por corpos femininos de nuante e insinuante movimentação, perante a plateia que aplaudia.

- Não estamos aqui perante uma pessoa qualquer – continuou - temos um contacto de segundo grau! Desculpe, qual é a sua profissão?

- Sou pintor.

- Pinta paredes?

- Não, sou artista plástico, aliás tenho uma técnica única em Portugal…

- Pinta sem tintas? Ah! Ah! Ah!...

- Não, pinto a fogo.

- Isto é fogo, caros telespectadores! Com isqueiro, ou maçarico oxídrico? – e a audiência ria e aplaudia pateticamente.

- Não posso responder, foi uma técnica que aprendi na Suiça com um artista que revolucionou a pintura.

- Mas agora deixemos a pintura e falemos desse objecto voador, tem fotografias dessa nave espacial?

Puxando preguiçosamente de duas fotografias retiradas do bolso, logo foi envolvido pelas câmaras ávidas de imagens que, debruçadas sobre elas, expandiram através da sua retina vidrada, as reproduções em negro fundo estrelado de uma esfera, azul e luzente para todo o país.

O público aplaudirria.

- Já fiz uma pintura desta visão que tive. Era real, isso posso garantir e desde esse dia, já passou mais de um mês, os meus cães nunca mais apareceram…

- Não me diga que foram levados para outra galáxia?...

- Apenas sei que se assustaram, tal como eu e pura e simplesmente nunca mais os vi! Tal como a nave, que silenciosamente desapareceu a uma velocidade incrível na direcção do mar!

- Seria uma nova arma dos americanos: um submarino voador? – E o auditório cacarejava delirantes casquinadas.

- Caro amigo, foi um prazer tê-lo connosco, da próxima vez que cá vier espero que traga consigo um extraterrestre para eu poder entrevistar!

Conduzido por uma escultural assistente, no som confundido da repetitiva música, falsas ovações, displicentes assobios e estrepitosas gargalhadas, foi sombriamente encaminhado para os bastidores.

Na terra, depois de ter aparecido na televisão, conhecidos, amigos e anónimos, cumprimentavam-no, batiam-lhe nas costas, comentando por trás que mais um maluco, ou um lunático a necessitar de urgente tratamento, brotara como erva daninha sem produto químico-social para a exterminar.

Pintando a fogo, perdia-se nas labaredas que os pincéis apagavam ou atiçavam, percorrendo telas e madeiras chamuscadas de intenções que não acertavam no alvo da criatividade.

Numa garagem, à luz de um quente foco que o banhava em suor, fazia escorrer óleos desengordurados de existências perdidas em labirintos cuja saída não encontrava.

Apercebeu-se que um súbito silêncio envolveu o espaço exterior. Uma calma tão artificial que lhe mordeu as entranhas.

Subitamente a luz apagou-se.

Tropeçadamente alcançou o interruptor.

Movimentou-o para cima e para baixo sem resultado.

Um ruído arranhadamente contínuo fez-se ouvir no exterior da porta.

Dirigiu-se para ela enquanto a luz progressivamente ia surgindo.

Puxando o portão basculante viu correr para ele três cães faiscando pêlo azulnéon.


Fernando Magalhães

terça-feira, 29 de junho de 2010

Indaqua | Concurso Letras de Água



Indaqua envolveu milhares de crianças em concurso literário | Jornal de Vila do Conde, 24-06-2010, p.2

Leia o texto vencedor da turma

5ºF da Escola EB 2.3 Dr. Carlos Pinto Ferreira - Junqueira - Vila do Conde, A Gota de Água,


segunda-feira, 21 de junho de 2010

O Sangue de Cristo | Conto

O Verão já caíra de maduro como a seguir verão.
Era época de vindimas em olhares retrospectivos, com toda a tradicionalice que os anos foram apagando, como velas de aniversários consecutivos e onde os parabéns acabaram por se traduzir em paramales impossíveis de recuperar.
Outubro de calor, onde a serenidade se cheirava e os odores da terra inundavam bofes.
Árvores já declamavam estrofes de vermelho envoltas nas partituras de chilreios de pássaros já em migração.
Nessa altura era miúdo, rodeado de escalas gigantescas que criavam o meu universo em números não metricamente mensuráveis, mas que abrangentemente me abraçavam e me faziam sentir pequeno, mesmo puto…
Uma visão de uma nova festa deslizava perante os meus olhos:
- Homens apareciam despertando a manhã com cestos e tesouras, prontos a partir para a guerra da aniquilação das uvas pendentes de esteios com videiras.
Fui acompanhando o resfolegar cansativo do peso nas várias subidas e o assobiar despreocupado da leveza nas descidas.
O lagar ia enchendo nas incontáveis idas e vindas do descarregar dos bagos, que vagamente eram suspensas para beber um copo de vinho que já tinha sido e viria a ser. Cerveja não se comentava ou contava e água só para lavar as mãos dos mais limpos.
Na casa senhorial, afadigavam-se na preparação das refeições, a dona da quinta e as ajudantes improvisadamente iguais, ano, após ano.
A manhã no seu final e o arroz de cabidela, em tacho industrial, borbulhava em mesa colocada no exterior, sem toalha, na sua simplicidade de madeira, onde o caruncho já roía em incontáveis pontos. Guardanapos de branco linho contrastavam com as tábuas encastradamente escuras. Canecas também brancas com populares desenhos azuis de frutos e flores completavam o plinto da refeição.
No final o bagaço sem café, para o rematar da jorna que a tarde faria culminar.
Tudo que as videiras tinham esbarrigado, restava amontoado no lagar de pedra, ao toque badalado e distante das trindades da torre da pequena igreja.
Aqueles que a uva tinham colhido, vestiam agora compridos calções brancos de algodão que arregaçadamente se afundavam nos tintos cachos e abraçadamente os pisavam, não por despeito, mas pela consecução do aforismo final.
Entre canções e risadas, na sala a mesa era posta, desta vez com branca e ricamente bordada toalha.
O bacalhau, cozido com todos e mais alguns, espreitava da avantajada travessa só digna dessas ocasiões.
Enquanto as mulheres da casa permaneciam na cozinha aprontando um leite-creme queimado, um dos homens que se adiantara nas suas abluções finais, sentou-se à mesa. Retirou duas postas de bacalhau e ovo cortado em metades que sofregamente comeu. Não satisfeito na sua gula, continuou a desbravar a travessa fazendo ponte para o seu prato de mais e mais pedaços do agora infiel amigo.
No ruído da moengação, não ouviu os outros chegarem. Apenas as sombras projectadas que toldavam as lâmpadas do candeeiro pregado ao tecto o fizeram levantar os olhos. Outros pares de olhos o fitavam com animosidade estampada nos semblantes cansados.
- Então, não tiras a última posta? – Retumbou uma voz.
Quando o gesto se formou para retirar o último resquício da ceia, um comprido garfo de ferro com afiados dentes, voou empunhado pela voz trespassando a mão que estrebuchando fios de sangue ficou presa à toalha e madeira da mesa.

Só assim descobri que os padres não eram vampiros e que o sangue de Cristo descendia do vinho e não do sangue derramado de uma mão espetada por um garfo, ou um cravo…


Fernando Magalhães

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Fernando Magalhães | O professor


















Fernando Magalhães | O professor | Sala dos Professores
Escola EB 2.3 Dr. Carlos Pinto Ferreira - Junqueira - Vila do Conde

terça-feira, 8 de junho de 2010

Projectos de Arquitectura 3









Casa Ferreira - Beiriz - Póvoa de Varzim

Esta moradia nasceu de uma pré-existência, um antigo armazém,que o requerente por questões historicistas e afectivas pretendeu manter. Por esse motivo podemos considerar que a solução arquitectónica partiu de dentro para fora, com todas as questões subjacentes de definições de espaços e trajectos. Existiu uma preocupação na escolha de materiais nobres e sem necessidade de grande manutenção. No exterior utilizamos em profusão o granito, o xisto, o aço inox, placas de Alucobond a imitar madeira, contraplacado marítimo de Afizélia e deck em travessas de madeira de caminho de ferro (TGV Belga). Os interiores primaram pelo vidro lacado, granito Árabe e Indiano, madeira de Afizélia em soalho tradicional e Silestone.

Trabalho realizado em co-autoria com o Arquitecto Francisco Furtado.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Projectos de Arquitectura 2





Casa Xana, Bagunte, Vila do Conde. Construída em 2008, esta moradia encontra-se implantada num terreno de acentuado declive que foi aproveitado para desenvolver a sua divisão espacial interna e articulação entre áreas de estar e de serviço. Foi dado especial destaque à arquitectura de interiores, recorrendo-se para o efeito à utilização da madeira, xisto e mármore fóssil. Trabalho realizado em parceria com o Arquitecto Francisco Furtado

Projectos de Arquitectura














Casa Manuela e Marcelino, Árvore, Vila do Conde. Construída em 2008. Esta moradia obedeceu a um programa onde imperava a versatilidade, simplicidade e economia. De arquitectura marcadamente minimalista, destaca-se pelo enquadramento no terreno e escolha dos materiais. Este projecto foi realizado em parceria com o Arquitecto Francisco Furtado

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Tesouro | Escola EB 2.3 Dr. Carlos Pinto Ferreira



Fernando Magalhães e José Miguel Silva, respectivamente autor e ilustrador de O Tesouro, com os alunos na Biblioteca da Escola EB 2.3 Dr. Carlos Pinto Ferreira, Junqueira, Vila do Conde, em 19 de Março deste ano.


Mais fotos em junkeira.blogspot.com

O Senhor dos Gatos | Conto


Tricotava gestos no meio da noite, escondendo o novelo das intenções a pessoas que aparentemente alheias passavam, ou ao trânsito automóvel que de olhos abertos em luz varriam uma rotunda da cidade.
Cirandava no exterior de uma fábrica em ruínas, após ter estacionado o carro, já com uns dez anos marcados de arranhões e tinta preta baça. Contornou o veículo, abriu uma das portas, retirou um saco plástico e olhando à volta e ensaiando passos incoerentes, baixou-se e espreitou para debaixo do automóvel. Desatarraxou a antena que guardou no interior do mesmo, trancou as portas, colocou o saco sobre o “capot “ e olhou em redor. Por vezes encolhia-se encostado ao carro, de braços cruzados, qual animal acossado, quando vislumbrava algum transeunte mais próximo.
Nos momentos em que o silêncio se abatia na quietude esquecida de movimentações, apartava restos de comida do saco plástico e passava-os para um recipiente de “fast-food” sem retorno, ciciando palavras e mergulhando a mão numa falha entre tijolos que entaipavam uma das entradas do degradado edifício.
Então aparecia um par de olhos luminescentes que saltando pelo orifício procuravam ronronando o alimento e, pouco depois, mais dois pequenos gatos se lhe juntavam no festim nocturno tão aguardado.
Desemaranhando toscas carícias nos pêlos mal tratados de sóis e chuvas de abandono, como anfitrião empenhado acompanhou o apetite voraz e serviu leite num prato de papel.
Reparando na lânguida preguiça que a satisfação da abundância provocara, colheu do automóvel uma caixa de cartão forrada com um pequeno cobertor e colocou-a ao abrigo do motor ainda quente.
Provavelmente desejou uma boa noite em linguagem felídea e lá se foi, avenida abaixo, no seu passo bamboleante, absorvido pela escuridão, com a qual candeeiros de luz empalidecida, teimosamente jogavam às escondidas.
E, todos os dias, obstinada e escrupulosamente, se repetiam os gestos semi-escondidos, cúmplices da noite, repartidos em solidões coniventes e preenchidas.

Soube mais tarde que tinha sido jogador de futebol.
Jogou cegamente a bola da sorte até à exaustão, até à aposentação trabalhada, suada e perseguida em outras sortes e outros locais, pontapeando agora o destino sem bola e sem visão clara de futuro.
No fado obscuro desse tempo tinha casado e adquirido uma pequena habitação com a ajuda de prestações pagas a uma instituição bancária, sempre solícita nestes casos.
Nunca teve filhos, mas o amor dele e da mulher pelos gatos completou o equilíbrio ausente e enquanto o espaço o permitia, qualquer gato teve direito a carinho, alimento e educação. Sim, porque isto de educar gatos é como educar filhos: ensinámos-lhes boas maneiras, hábitos de higiene, conselhos para atravessar as ruas, ou desesperamos quando chegam mais tarde a casa perdidos nos telhados de uma relação qualquer.

Eram quatro horas e vinte minutos da madrugada.
Fazia a ronda no edifício de uma multinacional onde o tinham contratado como vigilante.
O telemóvel vibrou.
Do outro lado disseram-lhe que a mulher estava no hospital e que uma fuga de gás tinha provocado um incêndio em casa…

…Da casa apenas restavam as paredes exteriores calcinadas.
A mulher falecera carbonizada.
Os gatos também.
Solitário, sentiu que ser homem era estar para além dos outros homens, para além da dor, da obsessão da vida, da loucura e da exigência social.
Constatou com a amargura da perda, que os gatos que tivera nada lhe exigiram em troca, apenas o carinho e a veracidade de ser humano.
Hoje gostaria de trocar essa condição de humano e esquecer tudo: falsidades, sociedade, hipocrisia, promessas, materialismo frívolo, egoísmo, guerra e imbecilidade.

No meio da avenida, falando com o arrumador de automóveis para enganar o silêncio da solidão que o persegue, discursa a moral dos sentidos para a imoralidade dos que o apontam sem sentido e sem razão.
E, tecendo carinhos e entretecendo firmes vontades que o fútil lugar comum teima em reprimir, continua a alimentar os vadios gatos de rua, perdido nos gestos que esconde e que inventa, não por querer, mas por entender que serão sempre gestos que a pluralidade dos homens nunca compreenderá e apagará para sempre da memória.

Fernando Magalhães

terça-feira, 18 de maio de 2010