segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Tesouro | Escola EB 2.3 Dr. Carlos Pinto Ferreira



Fernando Magalhães e José Miguel Silva, respectivamente autor e ilustrador de O Tesouro, com os alunos na Biblioteca da Escola EB 2.3 Dr. Carlos Pinto Ferreira, Junqueira, Vila do Conde, em 19 de Março deste ano.


Mais fotos em junkeira.blogspot.com

O Senhor dos Gatos | Conto


Tricotava gestos no meio da noite, escondendo o novelo das intenções a pessoas que aparentemente alheias passavam, ou ao trânsito automóvel que de olhos abertos em luz varriam uma rotunda da cidade.
Cirandava no exterior de uma fábrica em ruínas, após ter estacionado o carro, já com uns dez anos marcados de arranhões e tinta preta baça. Contornou o veículo, abriu uma das portas, retirou um saco plástico e olhando à volta e ensaiando passos incoerentes, baixou-se e espreitou para debaixo do automóvel. Desatarraxou a antena que guardou no interior do mesmo, trancou as portas, colocou o saco sobre o “capot “ e olhou em redor. Por vezes encolhia-se encostado ao carro, de braços cruzados, qual animal acossado, quando vislumbrava algum transeunte mais próximo.
Nos momentos em que o silêncio se abatia na quietude esquecida de movimentações, apartava restos de comida do saco plástico e passava-os para um recipiente de “fast-food” sem retorno, ciciando palavras e mergulhando a mão numa falha entre tijolos que entaipavam uma das entradas do degradado edifício.
Então aparecia um par de olhos luminescentes que saltando pelo orifício procuravam ronronando o alimento e, pouco depois, mais dois pequenos gatos se lhe juntavam no festim nocturno tão aguardado.
Desemaranhando toscas carícias nos pêlos mal tratados de sóis e chuvas de abandono, como anfitrião empenhado acompanhou o apetite voraz e serviu leite num prato de papel.
Reparando na lânguida preguiça que a satisfação da abundância provocara, colheu do automóvel uma caixa de cartão forrada com um pequeno cobertor e colocou-a ao abrigo do motor ainda quente.
Provavelmente desejou uma boa noite em linguagem felídea e lá se foi, avenida abaixo, no seu passo bamboleante, absorvido pela escuridão, com a qual candeeiros de luz empalidecida, teimosamente jogavam às escondidas.
E, todos os dias, obstinada e escrupulosamente, se repetiam os gestos semi-escondidos, cúmplices da noite, repartidos em solidões coniventes e preenchidas.

Soube mais tarde que tinha sido jogador de futebol.
Jogou cegamente a bola da sorte até à exaustão, até à aposentação trabalhada, suada e perseguida em outras sortes e outros locais, pontapeando agora o destino sem bola e sem visão clara de futuro.
No fado obscuro desse tempo tinha casado e adquirido uma pequena habitação com a ajuda de prestações pagas a uma instituição bancária, sempre solícita nestes casos.
Nunca teve filhos, mas o amor dele e da mulher pelos gatos completou o equilíbrio ausente e enquanto o espaço o permitia, qualquer gato teve direito a carinho, alimento e educação. Sim, porque isto de educar gatos é como educar filhos: ensinámos-lhes boas maneiras, hábitos de higiene, conselhos para atravessar as ruas, ou desesperamos quando chegam mais tarde a casa perdidos nos telhados de uma relação qualquer.

Eram quatro horas e vinte minutos da madrugada.
Fazia a ronda no edifício de uma multinacional onde o tinham contratado como vigilante.
O telemóvel vibrou.
Do outro lado disseram-lhe que a mulher estava no hospital e que uma fuga de gás tinha provocado um incêndio em casa…

…Da casa apenas restavam as paredes exteriores calcinadas.
A mulher falecera carbonizada.
Os gatos também.
Solitário, sentiu que ser homem era estar para além dos outros homens, para além da dor, da obsessão da vida, da loucura e da exigência social.
Constatou com a amargura da perda, que os gatos que tivera nada lhe exigiram em troca, apenas o carinho e a veracidade de ser humano.
Hoje gostaria de trocar essa condição de humano e esquecer tudo: falsidades, sociedade, hipocrisia, promessas, materialismo frívolo, egoísmo, guerra e imbecilidade.

No meio da avenida, falando com o arrumador de automóveis para enganar o silêncio da solidão que o persegue, discursa a moral dos sentidos para a imoralidade dos que o apontam sem sentido e sem razão.
E, tecendo carinhos e entretecendo firmes vontades que o fútil lugar comum teima em reprimir, continua a alimentar os vadios gatos de rua, perdido nos gestos que esconde e que inventa, não por querer, mas por entender que serão sempre gestos que a pluralidade dos homens nunca compreenderá e apagará para sempre da memória.

Fernando Magalhães

terça-feira, 18 de maio de 2010

terça-feira, 11 de maio de 2010

Rua

Dona Umbelina | Conto

Dona Umbelina era orelhas despertas pela manhã…
Mal o sol lambia o betão indefinido de construções a nascente, logo se colava à janela, ou à porta da varanda da sala.
Nada tinha que fazer.
Enviuvadamente assumida e cusca por profissão, deixava escorrer lazeres, de ouvido pregado ao tecto, à rua, ou ao rés-do-chão.
Falas apagadas, ou histéricos gritos que andares transpiravam, eram tema de conversa.
Com amigas de chá das cinco, triangulando trajectórias que toda a rua abarcava, tontas deambulavam como mosca atrás de monturo por toda a cidade acima.
…Tão longe, que o ser ou não ser, era um talvez, já pintado em pesadas cores grafitadas na mais branca e esfíngica parede.
Teceduras de brocados ou teias urdidas por desleixadas aranhas, as palavras abertas ao vento, varriam folhas imaculadamente verdes que previamente avermelhavam de vergonha, acastanhavam de desespero e apodrecidamente eram calcadas pela sociedade ensandecida que no boato acreditava sem acreditar na vida.
No bafiento sopro da palavra desatada à rebelia, sem pudor, destemperada e envenenada como seta, casamentos abalaram, sociedades caíram, amizades soçobraram e relações paternais ruíram.
Era um sismo não mensurável na escala de Richter, mas umbelinamente provocado como marabunta desenfreada que roía sentimentos e valores à passagem, semeando o pânico das sombras lançadas em pleno meio-dia.
A cidade agitava asas de gaivota em mar de tempestade, os habitantes comentavam o que não sabiam, as autoridades sem pistas palpáveis recomendavam calma, os jornais e revistas vendiam o inexplicável e Dona Umbelina ria…
Ria tanto, que as lágrimas se transformavam em riachos insondáveis que alagavam as margens do bom senso e criavam inundações de imbecilidade.
Os animais, como barómetros prevendo tempestade, viravam-lhe a cauda. E quem não consegue falar com animais, também não fala com gente. Porque animal é gente, só que sociabiliza de outra maneira. E um cão que reumaticamente passava, levantando despudoradamente a perna, resmungou caninamente presente um indiferente latido e, com traumático orgulho, pisou em abandono o asfalto que se perdia em reverberantes calores pela estrada sem destino, ou predestinadamente escolhida, quem sabe!
Dona Umbelina, perdida de incompreensão, levou as mãos à cabeça em evacuação de inconformada raiva, mais irada que raiva que cão não tinha. E sumiu na tarde, pintando a cabeça de negro de intenções que iam fervilhando no carvão do coração mirrado e queimado de folhas escritas em obscura caligrafia.
Ao entrar em casa transpirava revolta, daquelas que a alma, se existe, não contém; perdendo-se em penumbras de vingança, apontou dedolarmente a mercearia da esquina.
Comércio local, onde as moscas partilhavam mercadoria que o freguês comprava e o cheiro a bacalhau demolhado, lembrava defunto afogado devolvido à areia dois meses passados. E telefonicamente denunciou no teclado as incúrias à cúria que mais desasamentos aplicava.
Pouco tempo bastou para que a pacata rua se enchesse de sirenes rebocadas por carros policiais clamando por vingança às normas postuladas.
A mercearia virou cartel em tempo activo de droga, por mãos de indivíduos armados de capuzes e escondidos por armas, que pistolavam, ou metralhavam, se incompreendidamente entendidas pelo espanto ou falta de cooperação.
Latas de sardinhas em conserva, bifes do vazio, gomas que os miúdos adoravam e arroz carolino, sem falar no esparguete, foram revirados, esventrados, espalhados e calcados no chão de tijoleira que ainda brilhava de produto anti-séptico. Até a sanita, na sua digna displicência, passou pela humilhação de não servir os intentos para os quais estava destinada, tendo sido arrancada da parede e esmiuçada no seu auto (crismo), nada revelando das traseirices e peças adjacentes com quem partilhava assento todos os dias.
Imoral da história: o bacalhau era o culpado, o infiel amigo de demolhos esquecidos, foi considerado o réu que pagou multa de fechar porta.
E o comércio local, já perdido na procura, perdeu-se na oferta do esquecimento!...
Quem não foi esquecida foi Dona Umbelina.
Em missiva de registo postal ostentatório iniciada em A e acabada em E com pontos à mistura e coleante serviço em serpentino S, alheia a abecedários desnecessários, foi convidada a cuscar em lugar de destaque no topo da rua, da cidade e do poder…
Perante as amigas, em sorvedouros de chá das cinco, gaba-se de nunca ter fumado em casino ou avião!...
Junto à porta da casa, o cão do asfalto, alçava a pata em líquido cumprimento.


Fernando Magalhães