terça-feira, 26 de abril de 2011

O Morto-Vivo | Conto

Sem título | José Cadeco | Guache s/papel, 21x29 cm

Nunca se tinha sentido cadáver.

Sem dúvida que era a primeira vez, pois não se lembrava de outras.

Deitado num caixão rodeoflorido de coroas, ramos e palmas surdas de verde de onde espreitavam timidamente flores ensaiadas para a ocasião, olhava mortiços círios tremeluzentes, acompanhados de rezas ecorrepetitivas e conversas mastigadas em risos ainda mais longínquas.

Como deglutir situação tão bizarra?

Notara que um cansaço já o perseguia tentacolando-lhe as pernas e sugando-lhe o ar. Atirou estas preocupações para as impostocartas e envelopodívidas que em desordenado mensalmente vencido em profissão outrora conceituada, mas agora desoneradamente desvirtuada nos conceitos políticos vigentes, desfalecia desamparado nas tenazes das finanças.

Culpava a pequena caixa do correio, que, quando aberta, vomitava papel infectado de contas de serviços debitados e ameaçadores em datas e, quando cansado chegava, apenas pretendia entrar na porta onde esse sinistro cubículo se encontrava encastrado, apenas para estar, ser, viver, alimentar-se e dormir.

A vida é mesmo assim! Não gastamos em nós pensando nos outros, que nem sabem se existimos, que não nos ligam, nem nos conhecem, apenas percebem que somos através de um nome que habita um número de uma casa numa rua de uma cidade qualquer.

E vão-nos acenando com cartas e mais cartas, às quais vamos dando resposta, cartas essas que se refugiam em siglas S.A. ou E.P. que transportam a luz artificial que a noite ilumina, o gás que afogueia os alimentos e água que liberta o corpo e nutrimentos da sujiterrosidade e ainda uma NET que traz na rede emaranhada das teias sociais um download de mais oferecer sem se comprometer, quando procuramos aprender.

Mas por que pensava nisto agora?

Neste momento não percebia muito bem se dormia, ou se pela primeira vez acordava para o contraponto inexpugnável de caminhar em frente e mover escondidas vontades de revolucionariamente lutar.

Mas à volta apenas esquadrinhava cetins brancos e ao longo do seu corpo um fato novo que não se recordava de ter comprado.

Ela estava lá.

O ruído pesado dos tacões, que soava do corpo também pesado, no qual se achava em forma no seu quase meio século, que não contemplava inibições e se queixava que o problema era a falta de desporto, ginástica ou exercício.

Muito francamente já não sabia qual era! Fazendo um somatório do que já tinha ouvido em vida, remoía que era tudo ligado à grande vontade de comer e nada fazer no sentido contrário da regurgitação a ginasticar.

Estar vivo é difícil, ele conhecia, principalmente quando não se dá conta do corpo que a nossa vida contém e nos julgamos eternos adolescentes mostrando formas disformes que teimamos em não esconder.

Os saltos altos, batidamente no chão, aproximaram-se dele acompanhadamente.

- Está mesmo bem, não está? Tal e qual como em vida!

- Sim, é ele tal e qual! – aquiesceu a amiga – Carrega o número 7 na vida e na morte. Está noutro mundo que nós não conhecemos, mas que ele está a ver. É o fim e o princípio de tudo. Não sei se teria acabado ou iniciado algo de novo. A numerologia identifica, mas deixa muitas clareiras que a vida não entende não se extendindo!...

- E se extinguindo?

- …Poderia fazer um mapa astral! A vida em luz nada tem de mal, à noite é que se transforma numa incógnita!

Ele tudo ouvia, podia jurar, mesmo não sabendo o que era a morte, também não sabia se estava morto. Muito redondamente não tinha visto aquela luz ao fundo do cónico túnel que outros já tinham vislumbrado. A vida é mesmo assim, recreia-se com a morte em jogo de faz de conta preso por um fio de cordel que se estende ou se retrai puxado ou distendido pelos dedos do destino.

Tanta coisa para fazer, tanta coisa para dizer, tanta coisa para calar!...

Relembrou o que fizera estar com ela, permanecer nela…

…Uma mão repleta de tudo e nada!

Paixões passadas, divórcios, anátemas de sentimentos por resolver em embrulhos sem fitas, onde os presentes em papel dourado, eram surpresas envenenadas que espalharramavam as incertezas.

Foi muito bom no início das inocências já sentidas, mas recalcadas e omitidas em traições, no esquecimento do já não saber por exclusões cansativas de tão pouco, sempre, repetitivos fazeres, sem força ou originalidade.

Acordou em nova forma e invólucro, manuseada no noviciadamente criativo carinho de explosões repetidas de túrgidas arremetidas, que despertavam o novo alvorecer de descargas sensuais nos já esquecidos sabores de um beijo ou fantasias de amor.

Contava-lhe histórias de pasmar, que a vida, de ser tão velha, já não se recordava.

Histórias da cor dos sentimentos: azuis, verdes, amarelas, vermelhas… tudo embalado no mistério de ter existido, mesmo quando pensava que não existia, ou não voltaria a existir.

Nessa altura foi feliz e inundava de ventura com flores da alma quem o rodeava.

Mas que merda de história!

Tão chata como sentir-se deitado num caixão sem se poder mexer ou sentar, reclamar ou gritar que queria sair e que aquela cama forçada não era a sua.

Entretanto as vozes foram-se extinguindo pouco a pouco. Os passos iam-se afastando perdidos no calcorrear limitado do mármore da capela mortuária.

A luz artificial foi desligada. Uma porta fechou-se.

A paz velada pelas velas de cera que bruxuleantes projectavam luz nas paredes, despejavam halos adociqueimados que o fizeram tossir.

- Que fazes aqui? – fez-se ouvir uma voz no silêncio jazente.

- Que eu saiba morri! – respondeu aturdido.

- Morreste o caraças! – ripostou-lhe a mesma voz vinda de uma cruz bem frentemente a ele – Levanta-te e vai é fazer umas férias!

- Férias? Não tenho dinheiro para essas mordomias!

- No altar que vês tens um envelope onde se encontram um novo cartão de cidadão e um cheque em branco para preencheres. Também podes verificar que um bilhete de avião e um passaporte se encontram lá. Nada tem nome, porque tu nada és, mas serás sempre reconhecido por aqueles que te amaram ou odiaram. Um nome é apenas uma ligação a um corpo que se identifica com ele não o tendo escolhido ou adoptado. Levanta-te e parte para todo o sempre ou o nunca! – E a figura pregada, agitava-se contorcidamente sem admitir qualquer tipo de réplica.

Ergueu-se quase caindo, arrastando o caixão das peanhas onde o tinham colocado.

Observado por um olhar vivo e coriscante que sob uma coroa de espinhos que rasgavam a carne em pérolas de sangue, o seguia continuadamente, retirou o envelope que se encontrava mesmo por baixo da cruz.

Vergadecendo despediu-se em perdida e atónita contemplação.

- Não te esqueças do caixão, não o quero aqui dentro! – ordenou num último aDeus a voz.

Assim fez. Pesava para burro! E os sapatos apertavam-lhe os joanetes!

A porta da capela abriu-se como “sésamo”!

Na rua, nem a sombra ou o som de um gato com cio.

Colocou a urna num canteiro de jardim que circundava a capela e correu pela cidade fugindo à morte.

Aos primeiros raivosos fulgores da manhã, nos quiosques de esquina os jornais gritavam em letras a negrito altimpressas: “Cadáver de professor desapareceu!”

Não se efectuou o funeral, mas todo o corpo docente e chegados familiares, compareceram de sombrio luto, sem saberem verdadeiramente o que faziam junto a uma capela mortuária, com um caixão virado de cangalhas, num canteiro à beira-mar florido.

Os alunos, indisciplinadamente na sala de aulas, aguardavam uma substituição.

Fernando Magalhães – Abril 2011