Cirandava no exterior de uma fábrica em ruínas, após ter estacionado o carro, já com uns dez anos marcados de arranhões e tinta preta baça. Contornou o veículo, abriu uma das portas, retirou um saco plástico e olhando à volta e ensaiando passos incoerentes, baixou-se e espreitou para debaixo do automóvel. Desatarraxou a antena que guardou no interior do mesmo, trancou as portas, colocou o saco sobre o “capot “ e olhou em redor. Por vezes encolhia-se encostado ao carro, de braços cruzados, qual animal acossado, quando vislumbrava algum transeunte mais próximo.
Nos momentos em que o silêncio se abatia na quietude esquecida de movimentações, apartava restos de comida do saco plástico e passava-os para um recipiente de “fast-food” sem retorno, ciciando palavras e mergulhando a mão numa falha entre tijolos que entaipavam uma das entradas do degradado edifício.
Então aparecia um par de olhos luminescentes que saltando pelo orifício procuravam ronronando o alimento e, pouco depois, mais dois pequenos gatos se lhe juntavam no festim nocturno tão aguardado.
Desemaranhando toscas carícias nos pêlos mal tratados de sóis e chuvas de abandono, como anfitrião empenhado acompanhou o apetite voraz e serviu leite num prato de papel.
Reparando na lânguida preguiça que a satisfação da abundância provocara, colheu do automóvel uma caixa de cartão forrada com um pequeno cobertor e colocou-a ao abrigo do motor ainda quente.
Provavelmente desejou uma boa noite em linguagem felídea e lá se foi, avenida abaixo, no seu passo bamboleante, absorvido pela escuridão, com a qual candeeiros de luz empalidecida, teimosamente jogavam às escondidas.
E, todos os dias, obstinada e escrupulosamente, se repetiam os gestos semi-escondidos, cúmplices da noite, repartidos em solidões coniventes e preenchidas.
Soube mais tarde que tinha sido jogador de futebol.
Jogou cegamente a bola da sorte até à exaustão, até à aposentação trabalhada, suada e perseguida em outras sortes e outros locais, pontapeando agora o destino sem bola e sem visão clara de futuro.
No fado obscuro desse tempo tinha casado e adquirido uma pequena habitação com a ajuda de prestações pagas a uma instituição bancária, sempre solícita nestes casos.
Nunca teve filhos, mas o amor dele e da mulher pelos gatos completou o equilíbrio ausente e enquanto o espaço o permitia, qualquer gato teve direito a carinho, alimento e educação. Sim, porque isto de educar gatos é como educar filhos: ensinámos-lhes boas maneiras, hábitos de higiene, conselhos para atravessar as ruas, ou desesperamos quando chegam mais tarde a casa perdidos nos telhados de uma relação qualquer.
Eram quatro horas e vinte minutos da madrugada.
Fazia a ronda no edifício de uma multinacional onde o tinham contratado como vigilante.
O telemóvel vibrou.
Do outro lado disseram-lhe que a mulher estava no hospital e que uma fuga de gás tinha provocado um incêndio em casa…
…Da casa apenas restavam as paredes exteriores calcinadas.
A mulher falecera carbonizada.
Os gatos também.
Solitário, sentiu que ser homem era estar para além dos outros homens, para além da dor, da obsessão da vida, da loucura e da exigência social.
Constatou com a amargura da perda, que os gatos que tivera nada lhe exigiram em troca, apenas o carinho e a veracidade de ser humano.
Hoje gostaria de trocar essa condição de humano e esquecer tudo: falsidades, sociedade, hipocrisia, promessas, materialismo frívolo, egoísmo, guerra e imbecilidade.
No meio da avenida, falando com o arrumador de automóveis para enganar o silêncio da solidão que o persegue, discursa a moral dos sentidos para a imoralidade dos que o apontam sem sentido e sem razão.
E, tecendo carinhos e entretecendo firmes vontades que o fútil lugar comum teima em reprimir, continua a alimentar os vadios gatos de rua, perdido nos gestos que esconde e que inventa, não por querer, mas por entender que serão sempre gestos que a pluralidade dos homens nunca compreenderá e apagará para sempre da memória.