sexta-feira, 29 de março de 2013

Que ninguém saiba que és um homem



Nunca gostei de ser personagem interveniente nas minhas próprias histórias, que vou construindo com um certo abstracionismo e visão míope de contemplações, registos, deduções ficcionistas e com finalizações que não procuro, mas que aparecem sem as desejar.
Rasgo véus que me transportam à infância.
A música é etérea e envolvente e a vontade de ser pianista, ou lidar com um teclado e reproduzir melodias, era um “light motif” que me perseguia desde os sete anos.
Adiado este sonho - sempre por progenitura máscula, que não contemplava um filho amante da música - nos tempos em que a Mocidade Portuguesa preparava carne para canhão nas guerras coloniais, música que não se transformasse em hinos pseudo heroicos, não era música. Os “terroristas” não se combatiam com acordes musicais, mas com armas.
E, na adolescência, recebeu uma espingarda de caça, com carta de caçador e licença e uso de porte de arma. Tinha quinze anos!
- Não és homem nem és nada se não acertares naquela rola!
A rola voava na transparência de um céu azul e na quietude de um bosque verde de esperança, que rumorejava docemente o respirar das folhas sopradas por aragem de verão.
A espingarda foi levantada, o gatilho premido e o tiro foi cuspido contra uma ave que riscava o horizonte e que, desajeitadamente sacudida, desceu em espiral de derradeiro voo e caiu próxima dos nossos pés.
Reparei que ainda se agitava em último assomo de vida. Sem piedade e pegando no ferido pássaro, bateu-lhe com a cabeça num esteio granítico de vinha, matando-o.
- Devias ser tu a fazer isto, já que não lhe acertaste como devia ser!...
- Não sou homem para isso! – pensei repudiando tal atitude.
A partir desse momento decidi que nunca mais atiraria sobre qualquer animal. A emoção de esgrimir uma arma não me permitia pôr fim a uma vida. Aves como galinholas, perdizes, patos bravos, ou mamíferos como coelhos, lebres, ou javalis, foram riscados da minha carta de “caçador”.
No entanto, apareciam frente aos meus olhos, perante a mira da minha espingarda, e a minha atuação, para não levar reprimenda, era disparar para o lado, de maneira a que o leque de chumbo dum cartucho, calibre 16, nunca acertasse.
As censuras sucediam-se: - Um coelho à tua frente e não lhe acertaste! Uma perdiz a dois metros e não tiveste pontaria?
(Vou fazer aqui uma pausa e tomar um café!...)

Guardava comigo a vontade de não ser homem como queriam que fosse. Deixar os animais viverem e continuarem a sua senda de liberdade e procriação. Esta sensação alegrava-me a alma e preenchia-me o ego! Sentia-me feliz pelo equilíbrio que me inundava a alma e que pensava se repercutisse no Universo!
Afinal a Natureza é única!
Caçar não é um desporto, é uma alienação primária e egocêntrica. Compreenderia se nos encontrássemos em tempos pré-históricos e necessitássemos de caçar para sobreviver, mas filhos da cidade? Que desporto tão cruel pode trazer prazer a um humano dito civilizado?
Morreu aqui a minha história de caçador sem nunca o ter sido e abominando tais práticas.
Mais tarde, transportado por mãos amigas para um clube de tiro, dediquei-me a praticar tiro aos pratos, tendo ganho como júnior alguns prémios.
Na era do fascismo, em Portugal, os jornais, censurados a lápis azul, apenas documentavam notícias sem interesse, omitindo as greves e manifestações de trabalhadores ou estudantes, lutando por melhores condições de trabalho, vida, liberdade, ou ensino. Todas elas eram sanadas e remetidas ao silêncio pelas bastonadas da polícia e encarceramentos pidescos, que muitas vezes levavam à morte, devido às torturas e sevícias perpetradas.
Notícias como vencer um jogo internacional, um campeonato nacional de futebol, festivais da canção, fado no estrangeiro, mortes súbitas e mortais, ou peregrinações a Fátima, faziam as parangonas dos periódicos.
Num artigo de oitavo de página, aparecia um adolescente que tinha alcançado o primeiro lugar num concurso de tiro aos pratos.
A revolução instalou-se no ambiente familiar.
(…As minhas desculpas mas apetece-me fumar um cigarro! Volto dentro de momentos!)

- Então tu, que não acertavas num coelho que te saltava aos pés ganhas um concurso de tiro aos pratos que é muito mais difícil de acertar? – e, juntando as palavras à ação, uma tremenda estalada voou marcando-lhe a face de carmim.
Não se sentiu homem para responder e desapareceu dorido para a quietude do quarto, onde o abraço sempre presente de um livro, neste caso o “Adeus às Armas” de Ernest Hemingway, o esperava.
(Por favor aguardem uns minutos, ainda estou a ler e a digerir alguns excertos!)

A espingarda, uma Saint-Étienne de canos sobrepostos, acabou por ser o passaporte para uma licenciatura pós 25 de abril, após ser vendida para ir pagando as propinas.
Na faculdade, onde entrou em 1974, aprendeu, entre outras coisas, judo para defesa pessoal e a fabricar cocktails Molotov. A situação era muito indefinida e temia-se a toda a hora o acordar da Maioria Silenciosa de extrema-direita.
Com algumas pequenas escaramuças, mais verbais e sitiantes que físicas, espreitando contudo assaltos a sedes de partidos de extrema-esquerda, o prec passou, reduzindo, mas não calando na sua vontade, o eco da revolução.
A escola era única em termos de conceitos e de liberdade. A tentativa de fazer renascer uma nova Bauhaus, respirava em todas as paredes, jardins e cantina. O intercâmbio cultural a nível de todas as artes, assim como o sexualmente assumido, respiravam o ar fresco com perfume a primavera há tanto tempo esquecido.
Conheceu e intimamente e conviveu com várias colegas. Permanecem amizades que, de uma forma saudável e concreta ainda sobrevivem. Foi confidente, conselheiro, amigo e amante.
(A nostalgia, nestes momentos, toma conta de nós e por vezes, uma lágrima rebelde, teima em aparecer… há histórias da vida que nunca se esquecem e momentos que sempre permanecerão indelevelmente gravados na nossa alma! Desculpem mais este silêncio narrativo!)

- Estou grávida do Simão. Sabes como é o meu pai. Se soubesse, matava-me de pancada!
Ele sabia perfeitamente como o pai dela era: a escola tinha sido a mesma do seu.
Olhou para ela, era uma moça muito bonita (desejada por muitos colegas e até professores), que os pais, de ambas as partes gostariam de ver como uma futura união permanente. No entanto, a relação entre ambos resumia-se a um amor fraternal, conivente nas pequenas coisas da vida, nos bons e maus momentos, nas relações que tinham e que sem pudor relatavam um ao outro. Amizade não ultrapassável para outro patamar. Amigos leais e eternos!
- Que pensas fazer?
-Tenho que abortar!
- Já pensaste bem nisso, Ariane, já falaste com o Simão?
- É da mesma opinião! Como estudantes e sem trabalho não temos futuro para criar um filho!
- Como é que vais fazer o aborto? Conheces alguém que o faça, tens dinheiro?
- Não, não conheço ninguém, sei a quem posso recorrer para arranjar o dinheiro e depois pagar com a minha mesada, mas por favor vê se conheces alguma pessoa que me faça isto!
- Ariane, estás plenamente convencida que essa é a melhor maneira de resolver as coisas?
- Mas que outra alternativa vês?... – e lágrimas caudalosas escorriam dos seus belos olhos negros.
- Tudo bem, como teu amigo vou tentar resolver a situação! – as lágrimas também estavam prestes a saltar - Agradeço-te a tua confiança, mas muito francamente não me sinto nada bem neste papel!
- Por favor ajuda-me!...
(Novo interregno no passado, nova paragem para beber um copo de água e engolir a dor e interrogações que me assaltavam. Seria homem para solucionar tal feito?)
Lembrou-se de um colega de curso mais velho, que locutor na televisão, lhe pareceu ter conhecimentos suficientes para apontar um caminho que embora sinuoso, poderia conduzir a uma solução.
Apresentou-se como presumível autor do feito, ou do feto, e aconselhou-se quanto a uma solução que não sendo do seu agrado, mas atendendo às premissas familiares não tinha opções para vingar.
Indicou-lhe um médico numa clínica da cidade que o faria em troco do pagamento que cobrava na altura. Casado, mas com uma aventura fortuita, já tinha recorrido a ele.
Agradeceu e encontrou-se com Ariane para lhe dar conta das suas indagações.
- Já sabes como proceder, fala com o Simão! – e despediu-se com um beijo.
- Obrigada! – reconheceu retribuindo-lhe o beijo. – És o meu maior e mais precioso amigo!
(Nova pausa, neste momento exigível para a sequência da narrativa. Vou até à rua apanhar um pouco de ar fresco! Aproveito para levar o meu cão a passear.)

-Vens comigo à Clínica?
- Eu, a que propósito, o Simão não vai contigo?
- Diz que não se sente com coragem!
- Então ele fez-te o filho e não é homem para te acompanhar num momento tão delicado como este?
- Ele diz que não consegue... Por favor, vem comigo...
E ele foi.
Já não sabe que desculpa deu à namorada para não estar com ela naquela tarde, mas foi…
Subiram no ascensor até ao quarto andar.
Disseram à rececionista que a consulta já estava marcada.
Ariane apertava-lhe a mão que ele sentiu húmida, abandonada e tremente de apreensão.
- Podem entrar, o Doutor espera-os! – disse numa voz impessoal olhando-os por cima dos óculos bifocais.
Caminharam de mãos dadas uns escassos metros que pareceram quilómetros.
A porta abriu-se.
Uma figura longilínea de bata branca, convidou-os a entrar.
No interior do branco consultório, onde se vislumbrava uma cama de parturiente, com aparelhos metálicos que se elevavam no ar, aparecia hirta e expectante uma enfermeira também de branco vestida.
O médico, com ar severo olhou para ele.
- Têm a certeza do que querem fazer?
- Sim, alternativas não existem neste momento! – conseguiu articular.
- E não tem vergonha! Não sabe que existem mesmo alternativas como os contracetivos, os preservativos? As camisinhas, como os jovens lhes chamam? Faço isto, mas não é com agrado, já reparou que vai fazer com que uma nova vida deixe de existir?
Engoliu em seco. Nada tinha a ver com a situação e ridiculamente estava a ser enxovalhado passando por ser o autor de uma peça não escrita pela sua mão, ou neste caso por outro membro!
Embora amigo do Simão, naquele momento odiou-o de morte e lamentou seriamente a sorte de Ariane.
- Pronto, pode sair, agora é connosco!
Senti-me ferido no mais profundo da minha dignidade. Era como se tivesse sido o autor da gravidez indesejada. O futuro pai de uma criança que teria gostado de ter. O homem que na realidade não o era e que, naquele consultório imaculadamente branco, numa avenida central, ninguém sabia o que era ser homem!
Desci no ascensor e, sentando-me na primeira mesa do primeiro café que encontrei, pedi duas cervejas: uma para mim, outra para brindar comigo próprio!


Fernando Magalhães
29-03-2013


Sem comentários:

Enviar um comentário