quinta-feira, 26 de abril de 2012

25 de Abril


1973 – Faculdade de Ciências do Porto

“- Camaradas, não podemos permitir que nos calem à força! Que não possamos discutir os problemas do ensino, a guerra colonial, a ditadura que nos oprime! Temos que lutar pelos nossos ideais, não queremos ser carne para canhão! Queremos liberdade de expressão e pensamento!
Contra a opressão! … Contra a opressão!... Contra a opressão!...”
Coros gritantes de raiva e solidariedade soltavam vozes desamordaçadas que ecoavam nas paredes da Faculdade.
“ – Fujam, a polícia de choque! “ – fez-se ouvir uma voz sublevando os aplausos e os berros  cantados que em  uníssono já entoavam a Internacional  Socialista.
As portas de ferro abriram-se com estrondo e vultos negros de azul entraram em catadupa de fardas, escudos, capacetes e bastões.
A confusão abateu-se e debateu-se na débil tentativa de fugir à fustigada sibilante dos alongados cassetetes que rodopiavam como pás de moínhos soprados por vários ventos demoníacos, em voluteares lancinantes, como lancinantes eram os gritos e gemidos dos atingidos.
Viu-se envolto na confusão, como já se tinha tornado hábito nas R.I.A.”s (reuniões Inter Associações), onde todos os estudantes, desde os liceais, até aos universitários, se tentavam encontrar secretamente, para tomar decisões e ações, que mesmo “naïves”,eram consideradas o grito de alerta para a liberdade do pensamento e da palavra sempre perseguida e manietada pelo poder vigente.
Vários camaradas já tinham sido presos. Amigos, colegas, tanto rapazes, como raparigas e, dependendo da reincidência, agitadores reconhecidos, ou não, tanto dava direito a dormida gratuita nos calabouços com interrogatórios mais ou menos coercivos, ou multa paga pelos pais (dois mil escudos), com severos avisos policiais e posteriores admoestações verbais e até corporais, paternalmente infligidas.
Sabíamos que alguns camaradas passavam vários dias nos cárceres sendo sovados pela polícia e, em casos mais gravosos, enviados e interrogados pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado).

Correu às cegas pelos corredores, perseguido por uma sombra que esgrimia, como espada que cortava o ar, a chibata autoritariamente fabricada com aço e couro, que zunia no ar, assobiando canção de dramática elegia.
Ao passar pela cantina, pegou num vaso e, com toda a força, lançou-o sobre o perseguidor que o recebeu bem sobre a cabeça, desequilibrando-o e fazendo-o cair sobre o chão de mármore.
Saltou por uma janela que dava para o “Piolho” (o café mais frequentado pela camada estudantil) e desapareceu correndo, atravessando o jardim da Cordoaria rumo a casa.
Mais tarde veio a saber que o atingido era seu tio e, que se não fosse o pretenso escândalo familiar, teria sido notificado, ou preso em casa, para averiguações.
Durante anos não falou com o tio.

1974 – Colégio Particular no Porto

Tinha reprovado a Físico-Químicas e Matemática.
Tinha feito um poema libertário para o jornal do liceu que foi considerado antirregime.
Tinha tentado matricular-se no mesmo liceu, tendo-lhe sido vedada essa hipótese por ser considerado agitador político e reacionário ao poder que vigorava.
Escolheu um colégio próximo, onde podia, com paralelismo pedagógico, estudar as disciplinas em falta e contactar com os amigos de luta que não faltavam nem falhavam em reivindicações académicas.
“Das Kapital” de karl Marx, Rosa Luxemburgo, Lénine e até Che Guevara, eram mais mitos, ídolos e idiossincrasias, do que conceitos ideológicos ou teorias políticas revolucionariamente assimiladas.
Era um anátema de querer sem saber como alcançar.
Vivia-se a ideia do ser sem saber como.
Do falar, sem conhecer profundamente.
Do viver, por desconhecer.
Mas eram eles, adolescentes revolucionários, ídolos de si próprios, de mãos dadas com outros pretensos ídolos, que respiravam revolução, sonhavam socialismo e acordavam mudança social, igualdade de classes e arco-íris socioeconómico
“ – Sabes que algo aconteceu esta madrugada?” – perguntava Casimiro um colega de luta em manhã de aulas.
- Não, não sei de nada!
- Dizem que houve uma revolução e que o Tomaz e o Marcelo foram de vela!
- Não me acredito pá!
- É verdade! Até já passa a Grândola Vila Morena na rádio!
- Onde ouviste isso?
- Disseram-me, temos que saber!
- O quê, vais pedir ao diretor do colégio que ligue o rádio?
- Não pá! Vamos lá para fora! Compramos um transístor!
- Tens dinheiro? Eu tenho algum!
- Mostra!
Juntaram as moedas que tinham e abandonaram o colégio dirigindo-se a uma loja de eletrodomésticos.
Compraram um pequeno rádio transístor e ligando-o, apenas ouviam músicas marciais e pequenas intervenções do MFA (Movimento das Forças Armadas).
Abraçaram-se e saltaram no meio da rua, rindo e chorando ao mesmo tempo.
Os apelos eram claros: “- Todos deviam permanecer em absoluta calma, de preferência em casa, até novas informações.”
E, qual espanto, ouviram mesmo a Grândola do Zeca Afonso, no pequeno rádio a pilhas, roufenho, cujo som parecia saído de umas cordas vocais que tivessem inspirado hélio.
- Vamos para a Praça?
E foram, tomando o primeiro carro elétrico que se dirigia até lá.
A multidão era imensa!
Ouviram-se tiros que fizeram gente anónima correr e gritar.
A polícia carregava sobre a população tentando encaminhá-la para a rua de Ceuta onde se encontravam as carrinhas celulares prontas a amontoar os amotinados.
Subitamente surgiram camiões e tanques ligeiros do MFA, Berlietes e Panhards.

Um megafone, empunhado por um soldado graduado, fez-se ouvir do alto dum veículo militar de canhão apontado: “-Ou se rendem, ou disparamos! Larguem as armas!”
O povo em cólera voltou-se contra a polícia que desesperadamente tentava alcançar as carrinhas onde se tinha transportado.
A caça fez-se caçador. A polícia tudolargava: cassetetes, escudos, capacetes e até crachás, perante a multidão que avançava desenfreadamente em incontrolada fúria. Os vidros das carrinhas policiais foram partidos e agentes agredidos.
E por fim uma paz reinante aconteceu apenas acordada com vivas ao MFA e gritos de fascismo nunca mais.
Como por encanto apareceram cravos vermelhos que foram distribuídos pelos soldados e colocados no cano de metralhadoras.

Hoje, o outrora resplandecente cravo vermelho plantado em tubo de negro aço que cheirava a pólvora, apodreceu na terra carenciada de adubo pelas mãos governantes que se adubam a si próprias!...




Fernando Magalhães


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