“- Camaradas, não podemos permitir que nos calem à força! Que não
possamos discutir os problemas do ensino, a guerra colonial, a ditadura que nos
oprime! Temos que lutar pelos nossos ideais, não queremos ser carne para
canhão! Queremos liberdade de expressão e pensamento!
Contra a opressão! … Contra a opressão!... Contra a opressão!...”
Coros gritantes de raiva e solidariedade soltavam vozes
desamordaçadas que ecoavam nas paredes da Faculdade.
“ – Fujam, a polícia de choque! “ – fez-se ouvir uma voz
sublevando os aplausos e os berros cantados que em uníssono já
entoavam a Internacional Socialista.
As portas de ferro abriram-se com estrondo e vultos negros de azul
entraram em catadupa de fardas, escudos, capacetes e bastões.
A confusão abateu-se e debateu-se na débil tentativa de fugir à
fustigada sibilante dos alongados cassetetes que rodopiavam como pás de moínhos
soprados por vários ventos demoníacos, em voluteares lancinantes, como
lancinantes eram os gritos e gemidos dos atingidos.
Viu-se envolto na confusão, como já se tinha tornado hábito nas
R.I.A.”s (reuniões Inter Associações), onde todos os estudantes, desde os
liceais, até aos universitários, se tentavam encontrar secretamente, para tomar
decisões e ações, que mesmo “naïves”,eram consideradas o grito de alerta para a
liberdade do pensamento e da palavra sempre perseguida e manietada pelo poder
vigente.
Vários camaradas já tinham sido presos. Amigos, colegas, tanto
rapazes, como raparigas e, dependendo da reincidência, agitadores reconhecidos,
ou não, tanto dava direito a dormida gratuita nos calabouços com
interrogatórios mais ou menos coercivos, ou multa paga pelos pais (dois mil
escudos), com severos avisos policiais e posteriores admoestações verbais e até
corporais, paternalmente infligidas.
Sabíamos que alguns camaradas passavam vários dias nos cárceres
sendo sovados pela polícia e, em casos mais gravosos, enviados e interrogados
pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado).
Correu às cegas pelos corredores, perseguido por uma sombra que
esgrimia, como espada que cortava o ar, a chibata autoritariamente fabricada
com aço e couro, que zunia no ar, assobiando canção de dramática elegia.
Ao passar pela cantina, pegou num vaso e, com toda a força,
lançou-o sobre o perseguidor que o recebeu bem sobre a cabeça,
desequilibrando-o e fazendo-o cair sobre o chão de mármore.
Saltou por uma janela que dava para o “Piolho” (o café mais
frequentado pela camada estudantil) e desapareceu correndo, atravessando o
jardim da Cordoaria rumo a casa.
Mais tarde veio a saber que o atingido era seu tio e, que se não
fosse o pretenso escândalo familiar, teria sido notificado, ou preso em casa,
para averiguações.
Durante anos não falou com o tio.
1974 – Colégio Particular no Porto
Tinha reprovado a Físico-Químicas e Matemática.
Tinha feito um poema libertário para o jornal do liceu que foi
considerado antirregime.
Tinha tentado matricular-se no mesmo liceu, tendo-lhe sido vedada
essa hipótese por ser considerado agitador político e reacionário ao poder que
vigorava.
Escolheu um colégio próximo, onde podia, com paralelismo
pedagógico, estudar as disciplinas em falta e contactar com os amigos de luta
que não faltavam nem falhavam em reivindicações académicas.
“Das Kapital” de karl Marx, Rosa Luxemburgo, Lénine e até Che
Guevara, eram mais mitos, ídolos e idiossincrasias, do que conceitos
ideológicos ou teorias políticas revolucionariamente assimiladas.
Era um anátema de querer sem saber como alcançar.
Vivia-se a ideia do ser sem saber como.
Do falar, sem conhecer profundamente.
Do viver, por desconhecer.
Mas eram eles, adolescentes revolucionários, ídolos de si próprios,
de mãos dadas com outros pretensos ídolos, que respiravam revolução, sonhavam
socialismo e acordavam mudança social, igualdade de classes e arco-íris
socioeconómico
“ – Sabes que algo aconteceu esta madrugada?” – perguntava
Casimiro um colega de luta em manhã de aulas.
- Não, não sei de nada!
- Dizem que houve uma revolução e que o Tomaz e o Marcelo foram de
vela!
- Não me acredito pá!
- É verdade! Até já passa a Grândola Vila Morena na rádio!
- Onde ouviste isso?
- Disseram-me, temos que saber!
- O quê, vais pedir ao diretor do colégio que ligue o rádio?
- Não pá! Vamos lá para fora! Compramos um transístor!
- Tens dinheiro? Eu tenho algum!
- Mostra!
Juntaram as moedas que tinham e abandonaram o colégio dirigindo-se
a uma loja de eletrodomésticos.
Compraram um pequeno rádio transístor e ligando-o, apenas ouviam
músicas marciais e pequenas intervenções do MFA (Movimento das Forças Armadas).
Abraçaram-se e saltaram no meio da rua, rindo e chorando ao mesmo
tempo.
Os apelos eram claros: “- Todos deviam permanecer em absoluta
calma, de preferência em casa, até novas informações.”
E, qual espanto, ouviram mesmo a Grândola do Zeca Afonso, no
pequeno rádio a pilhas, roufenho, cujo som parecia saído de umas cordas vocais
que tivessem inspirado hélio.
- Vamos para a Praça?
E foram, tomando o primeiro carro elétrico que se dirigia até lá.
A multidão era imensa!
Ouviram-se tiros que fizeram gente anónima correr e gritar.
A polícia carregava sobre a população tentando encaminhá-la para a
rua de Ceuta onde se encontravam as carrinhas celulares prontas a amontoar os
amotinados.
Subitamente surgiram camiões e tanques ligeiros do MFA, Berlietes
e Panhards.
Um megafone, empunhado por um soldado graduado, fez-se ouvir do
alto dum veículo militar de canhão apontado: “-Ou se rendem, ou disparamos!
Larguem as armas!”
O povo em cólera voltou-se contra a polícia que desesperadamente
tentava alcançar as carrinhas onde se tinha transportado.
A caça fez-se caçador. A polícia tudolargava: cassetetes, escudos,
capacetes e até crachás, perante a multidão que avançava desenfreadamente em
incontrolada fúria. Os vidros das carrinhas policiais foram partidos e agentes
agredidos.
E por fim uma paz reinante aconteceu apenas acordada com vivas ao
MFA e gritos de fascismo nunca mais.
Como por encanto apareceram cravos vermelhos que foram
distribuídos pelos soldados e colocados no cano de metralhadoras.
Hoje, o outrora resplandecente cravo vermelho plantado em tubo de
negro aço que cheirava a pólvora, apodreceu na terra carenciada de adubo pelas
mãos governantes que se adubam a si próprias!...
Fernando Magalhães
Fernando Magalhães
Sem comentários:
Enviar um comentário