Ainda no ventre da mãe que me protegia como árvore, sorvia a seiva da vida e, feliz, pensava que salvava a Terra. Perdi a noção do tempo feito calendário de consecutivos anos. Nas várias estações que se sucediam, no calor de um verão, nas chuvas e neves de um inverno, nas intempéries que aconteciam, dando conta sem sentir, povoadas de ventos e trovoadas que sacudiam o meu cordão umbilical. Descansei na sombra que ajudava a produzir, nos ninhos de pássaros que abrigava, nos frutos que fabricava e que tão apreciados eram pelos humanos. Fazendo parte de um todo, contribuía com a minha parcela de nada, na imensidão da mãe à qual pertencia. Um dia, um ruído aterrador que alvoroçava aves e animais que tinham construído o seu abrigo na face das minhas folhas e na alma da minha raíz, despertou a floresta.
“O que seria?”, inquiria assustada pelo estrépito que espantava asas e fazia correr pequenos mamíferos sem destino aparente.
O som era intrigante,
metálico lancinante, rasgando o silêncio feito dor. Um motor cuspindo fumo,
rangendo dentes metálicos, cravou-se nas minhas entranhas, roendo-me a pele,
retalhando-me os músculos, artérias, ossos e coração. Sem me dar conta, caí em
cima de irmãs que já tinham sucumbido em lamentosos ramos, que se elevavam em
derradeira súplica para um céu já tingido de vermelho de sol poente. Fui
arrastada e içada para um grande veículo com rodas que ronceiramente me
transportou para um enorme e escuro barracão. Acordei com um guincho estrídulo
que compassadamente arremetia e por breves momentos cessava, voltando logo de
seguida a investir com mais vigor. Espalhavam-se parcelas de troncos e ramos
por todo o lado. Fiquei num canto, desmembrada, abatida, sem saber o que iria
acontecer.
“Esta serve para o que
pretendo, é uma óptima madeira!”, escutei uma voz e, como parcela do que tinha
sido uma árvore, fui transportada nas mãos calejadas de um humano.
Deu-me voltas e mais
voltas, escavando-me, dando-me uma forma estranha com uma concavidade que se
prolongava. No entanto uma sensação de carícia na maneira como era modelada,
invadiu a minha alma de madeira e fez-me sentir a paz nostálgica do que tinha
sido e do que estava para ser.
“Pronto, és uma bela
colher de pau!”, ouvi dizer.
Não tinha consciência do
que aquilo significava. O que seria uma colher de pau? Após ter pertencido a
uma árvore que vivia numa floresta sem limitações formais, confinada agora a um
objeto, deixei-me perder no vazio do sonho de quem não sabe se efetivamente já
tinha sido concebido, ou ainda se encontrava preso a conjeturas de poder vir a
ser. Mas afinal já era, quando umas pequenas mãos me tocaram e disseram:
“Vou-te transformar na
mais bela colher de pau que vai aparecer na Feira Grande de Janeiro!”
E uma voz infantil,
cantando, ia dizendo:
“Tu
és tudo que me resta,
para
poder semear
uma mágica floresta,
nesta
terra de encantar,
Vila do Conde, espraiada
entre pinhais, rio e mar…”
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