Sem título | José Miguel Silva | Técnica mista
Era uma vez o que era e não era e, por muitas vezes e por muitas eras, parecia não ser…
Mas simplesmente aconteceu, quando uma lâmpada que nunca tinha luzido os seus incandescentes filamentos metálicos, apareceu clara e límpida acesa no hall de entrada.
Antes e após várias consultas a electricistas que nunca conseguiram descobrir como o pólo positivo e negativo, colocados nos respectivos orifícios a esse fim destinados, se reduziam a um fio neutro e esquecido na determinação de brilhar; e que uma ligação perita, criando um circuito que conectada ou desconectada libertaria ou condenaria o decalque plagiado da luz do dia se ria das suas tentativas, desistiram enrolando desanimados fios eléctricos nas mãos e espetando busca-pólos na cabeça.
Às quatro e vinte da madrugada, tendo-se levantado para ir à casa de banho, deparou-se com a altiva lâmpada invadindo de tímbreo alvorecer as escadas e hall.
Um arrepio percorreu-a sentindo os cabelos eriçarem-se na nuca.
Pé ante pé aproximou-se do interruptor e, de dedo apontado e tremente, como se previsse um choque, conseguiu premi-lo e com alívio verificar que a luz se desligara.
Ainda trémula dirigiu-se para a casa de banho.
Sentada na sanita, já mais calma, ponderou que o facto de todos os electrodomésticos estarem desligados poderia ter gerado um acumular de energia que tivesse feito despoletar a luz.
Saiu da casa de banho e ao passar pelo patamar da escada estacou apavorada:
- Lá estava ela, firme e clara, iluminando o vazio formado pala caixa de escadas!
Correu espavorida para o quarto. O facto de viver sozinha em nada ajudava.
Enfiou-se na cama tremendo, puxou célere a roupa e escondeu a cabeça debaixo dela. Estava frio, os maxilares chocavam-se e as pernas tiritavam.
Viu a cama mergulhada em lâmpadas que tentava desligar através de um interruptor colocado à cabeceira da cama, mas quando estendia a mão, este desaparecia engolido pela parede.
As luzes tudo ofuscavam, bailavam à volta do quarto, penetravam nos lençóis, encandeavam-lhe os olhos, perfuravam-lhe a pele e jorravam pelos poros em milhares de claridades que a cada movimento voluteavam no tecto, nas paredes, no chão…
Um grito dilacerou-lhe a garganta, quando olhou para a janela e continuou a ver dezenas de focos de luz!
Acordou pesadelorosamente: - Era o sol que rasgava os orifícios dos estores!
O dia já ia alto.
Levantou-se arrastando um lençol de acalmia aparente e em movimento diarrotineiro pegou no fio do tem que ser da subsistência.
Quando a tarde se fez noite, recolhendo de um estafante dia de trabalho, ao abrir a porta lembrou-se da luz. Estava cega de brilho.
Premiu com receio o comutador. A claridade prontamente apareceu.
Confiante subiu as escadas.
No patamar tombou a escuridão.
O medo inundou-a e um peso caiu-lhe em cima, como se de um corpo agarrado a ela se tratasse. Vergada, arrastou-se a custo escada acima. Queria gritar, libertar-se daquele fardo que a subjugava, mas não conseguia...Gatinhadamente alcançou o último degrau. Gotas frias de suor escorriam fazendo os cabelos colarem-se à face e a roupa ao corpo.
Premiu outro botão e a luz obedeceu.
Fixou uma imagem. Era uma escultura de um Cristo rústico moldado em barro por mãos simples que não consideravam esoterismos ou paranormalogias, apenas acreditavam e compunham. Tinham-lho oferecido num dos seus aniversários, avolumando que era de Rosa Ramalho e que tinha sido benzido.
Colocara-o ali, por cima do aparador, esquecidamente pregado ao branco estuque de fundo.
Agora, sem saber porquê, olhava-o com respeito e confiança.
Acendeu todos os focos que foi encontrando até chegar à cozinha onde preparou uma refeição ligeira.
Jantou presa ao mínimo ruído que se fazia ouvir.
Fumou nervosamente um cigarro tentando rir para escarnecer dos seus receios.
- Mas… e o peso que sentira?
Nessa noite tinha que sair.
Foi tomar um duche.
Arranjou-se delongando sombras com rímel em intervalos intercalados de um ruidoso secador de cabelo.
Espreitou pela janela: chuva miudinha teimosamente coçava as vidraças criando uma neblina que de longe a longe era semi cortada por faróis de automóveis…depois tudo ficava preso à aura pálida e mórbida libertada pelos postes de iluminação.
Descendo a escada chamou um táxi e, de telemóvel na mão, foi desligando ininterruptamente interruptores acabando batendo com força a porta de entrada na cara da escuridão.
O táxi chegou.
Sentiu-se aliviada enterrando-se com languidez nos estofos amaciadamente coçados do carro, que alheio a tudo, deslizava no asfalto molhado rumo ao endereço que mencionara.
Uma sensação de segurança perdida era-lhe restituída pelo motorista, que de costas voltadas, assobiava em surdina uma canção que se desprendia da telefonia.
Teria sido tudo um sonho?
Chegou.
Premiu a campainha da porta da amiga.
Uma luz filtrada por um vidro laminado fosco apareceu e uma porta abriu-se.
- Tu! Por aqui?... Entra que te estás a molhar!
Entre quentes sorvedouros de chá, deslaçaram conversa de horas relembrando tempos de liceu.
Falaram do antigo professor de História, dos modos empolgados como dissertava sobre a Civilização Egípcia e a maldição dos faraós. Nos profanadores das Necrópoles e do seu triste fim.
- Oh filha, isso são tretas! – Replicava a amiga – Lembrei-me agora, ainda tens o Cristo da Rosa Ramalho que te ofereci?
Acenou, nada avançando relativamente aos temores que a tinham assaltado nas últimas horas. Receava que se expusesse as suas apreensões poderia ser considerada irracionalmente louca.
- Já é tarde! Tu agora não vais sozinha, vamos levar-te a casa!
Replicou que não era necessário, que apanhava um táxi, mas sentiu-se intimamente satisfeita por ter companhia durante mais algum tempo.
Pelo caminho, entaramelada na tagarelice da amiga, enquanto o marido conduzia, ia pensando se teria forças para entrar em casa.
- Estamos a chegar! Como consegues viver num sítio tão deserto?
Teve vontade de berrar que não queria viver ali, que detestava a casa, que tinha medo das paredes, mas nada disse temendo o ridículo.
- Olha, a luz das escadas está acesa, tu lembras-te de tudo, assim nenhum ladrão te assalta!
Tinha plena consciência que apagara todas as luzes e, sem querer, um arrepio que lhe eriçou a pele, fê-la soltar um enrolado suspiro.
Despediu-se sem pressas convidando-os a entrar.
Disseram que já era muito tarde e que ficaria para uma outra vez.
Esperaram enquanto metia a chave na fechadura e entreabria a porta.
Acenaram-lhe, enquanto o automóvel se foi perdendo na escuridão e na chuva.
Fechou a porta com tremenda apreensão.
Benzeu-se, o que já não fazia há muito tempo. De imediato estrondeou um trovão que tudo fez vibrar e abalar a estrutura do edifício como se duma construção de areia se tratasse.
Paralisada pelo terror, sentindo as pulsações fazerem eco nas paredes, tentou, num assomo de coragem, lançar o pé direito para o primeiro degrau. Depois, com esforço, o esquerdo para o segundo.
A lâmpada parecia rir, escandalosamente brilhante, do seu esforço.
Continuou sempre, sempre receosamente a subir…
…Este é o último! – pensou mais aliviada.
De repente olhou para a parede.
Enterrou com força as unhas nas palmas das mãos e soltou um grito que se repercutiu no silêncio.
O Cristo estava escaqueirado em mil pedaços, uns no chão, outros ainda agarrados à parede por onde manchas espessas de sangue encaracoladamente escorriam.
Novo trovão, ainda mais forte que o anterior; e a escuridão tombou em pesada queda.
Sufocada agarrou-se desesperadamente aos comutadores que não obedeciam.
Soluçava histericamente transida.
Lembrou-se de uma lanterna de algibeira que tinha no quarto. Às apalpadelas e tropeções tentou encontrar o caminho.
Sentiu um corpo viscoso e frio que lho barrava.
Umas mãos com o gelo da morte apertaram-lhe a garganta e um odor pestilento e sulfuroso fazia-a desfalecer.
Uma bola de fogo atravessou o patamar fazendo aparecer uma forma humanóide, negra e disforme, que se agigantava à sua frente.
A luz voltou.
Nada mais viu.
Correu para a casa de banho abafando um vómito.
Olhou-se ao espelho:
Uns olhos enormes, raiados de sangue, pendiam de órbitas negras de vazias. Uns dentes, sinistramente brancos despontavam de maxilares descarnados. Passando dedos despidos de tecido pelo ralo e crispado cabelo albino, a escuridão caiu, suspensa de uma lâmpada apagada…
Fernando Magalhães
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