terça-feira, 3 de maio de 2011

Era Uma Vez | Conto

Sem título | José Miguel Silva | Técnica mista

Era uma vez o que era e não era e, por muitas vezes e por muitas eras, parecia não ser…

Mas simplesmente aconteceu, quando uma lâmpada que nunca tinha luzido os seus incandescentes filamentos metálicos, apareceu clara e límpida acesa no hall de entrada.

Antes e após várias consultas a electricistas que nunca conseguiram descobrir como o pólo positivo e negativo, colocados nos respectivos orifícios a esse fim destinados, se reduziam a um fio neutro e esquecido na determinação de brilhar; e que uma ligação perita, criando um circuito que conectada ou desconectada libertaria ou condenaria o decalque plagiado da luz do dia se ria das suas tentativas, desistiram enrolando desanimados fios eléctricos nas mãos e espetando busca-pólos na cabeça.

Às quatro e vinte da madrugada, tendo-se levantado para ir à casa de banho, deparou-se com a altiva lâmpada invadindo de tímbreo alvorecer as escadas e hall.

Um arrepio percorreu-a sentindo os cabelos eriçarem-se na nuca.

Pé ante pé aproximou-se do interruptor e, de dedo apontado e tremente, como se previsse um choque, conseguiu premi-lo e com alívio verificar que a luz se desligara.

Ainda trémula dirigiu-se para a casa de banho.

Sentada na sanita, já mais calma, ponderou que o facto de todos os electrodomésticos estarem desligados poderia ter gerado um acumular de energia que tivesse feito despoletar a luz.

Saiu da casa de banho e ao passar pelo patamar da escada estacou apavorada:

- Lá estava ela, firme e clara, iluminando o vazio formado pala caixa de escadas!

Correu espavorida para o quarto. O facto de viver sozinha em nada ajudava.

Enfiou-se na cama tremendo, puxou célere a roupa e escondeu a cabeça debaixo dela. Estava frio, os maxilares chocavam-se e as pernas tiritavam.

Viu a cama mergulhada em lâmpadas que tentava desligar através de um interruptor colocado à cabeceira da cama, mas quando estendia a mão, este desaparecia engolido pela parede.

As luzes tudo ofuscavam, bailavam à volta do quarto, penetravam nos lençóis, encandeavam-lhe os olhos, perfuravam-lhe a pele e jorravam pelos poros em milhares de claridades que a cada movimento voluteavam no tecto, nas paredes, no chão…

Um grito dilacerou-lhe a garganta, quando olhou para a janela e continuou a ver dezenas de focos de luz!

Acordou pesadelorosamente: - Era o sol que rasgava os orifícios dos estores!

O dia já ia alto.

Levantou-se arrastando um lençol de acalmia aparente e em movimento diarrotineiro pegou no fio do tem que ser da subsistência.

Quando a tarde se fez noite, recolhendo de um estafante dia de trabalho, ao abrir a porta lembrou-se da luz. Estava cega de brilho.

Premiu com receio o comutador. A claridade prontamente apareceu.

Confiante subiu as escadas.

No patamar tombou a escuridão.

O medo inundou-a e um peso caiu-lhe em cima, como se de um corpo agarrado a ela se tratasse. Vergada, arrastou-se a custo escada acima. Queria gritar, libertar-se daquele fardo que a subjugava, mas não conseguia...Gatinhadamente alcançou o último degrau. Gotas frias de suor escorriam fazendo os cabelos colarem-se à face e a roupa ao corpo.

Premiu outro botão e a luz obedeceu.

Fixou uma imagem. Era uma escultura de um Cristo rústico moldado em barro por mãos simples que não consideravam esoterismos ou paranormalogias, apenas acreditavam e compunham. Tinham-lho oferecido num dos seus aniversários, avolumando que era de Rosa Ramalho e que tinha sido benzido.

Colocara-o ali, por cima do aparador, esquecidamente pregado ao branco estuque de fundo.

Agora, sem saber porquê, olhava-o com respeito e confiança.

Acendeu todos os focos que foi encontrando até chegar à cozinha onde preparou uma refeição ligeira.

Jantou presa ao mínimo ruído que se fazia ouvir.

Fumou nervosamente um cigarro tentando rir para escarnecer dos seus receios.

- Mas… e o peso que sentira?

Nessa noite tinha que sair.

Foi tomar um duche.

Arranjou-se delongando sombras com rímel em intervalos intercalados de um ruidoso secador de cabelo.

Espreitou pela janela: chuva miudinha teimosamente coçava as vidraças criando uma neblina que de longe a longe era semi cortada por faróis de automóveis…depois tudo ficava preso à aura pálida e mórbida libertada pelos postes de iluminação.

Descendo a escada chamou um táxi e, de telemóvel na mão, foi desligando ininterruptamente interruptores acabando batendo com força a porta de entrada na cara da escuridão.

O táxi chegou.

Sentiu-se aliviada enterrando-se com languidez nos estofos amaciadamente coçados do carro, que alheio a tudo, deslizava no asfalto molhado rumo ao endereço que mencionara.

Uma sensação de segurança perdida era-lhe restituída pelo motorista, que de costas voltadas, assobiava em surdina uma canção que se desprendia da telefonia.

Teria sido tudo um sonho?

Chegou.

Premiu a campainha da porta da amiga.

Uma luz filtrada por um vidro laminado fosco apareceu e uma porta abriu-se.

- Tu! Por aqui?... Entra que te estás a molhar!

Entre quentes sorvedouros de chá, deslaçaram conversa de horas relembrando tempos de liceu.

Falaram do antigo professor de História, dos modos empolgados como dissertava sobre a Civilização Egípcia e a maldição dos faraós. Nos profanadores das Necrópoles e do seu triste fim.

- Oh filha, isso são tretas! – Replicava a amiga – Lembrei-me agora, ainda tens o Cristo da Rosa Ramalho que te ofereci?

Acenou, nada avançando relativamente aos temores que a tinham assaltado nas últimas horas. Receava que se expusesse as suas apreensões poderia ser considerada irracionalmente louca.

- Já é tarde! Tu agora não vais sozinha, vamos levar-te a casa!

Replicou que não era necessário, que apanhava um táxi, mas sentiu-se intimamente satisfeita por ter companhia durante mais algum tempo.

Pelo caminho, entaramelada na tagarelice da amiga, enquanto o marido conduzia, ia pensando se teria forças para entrar em casa.

- Estamos a chegar! Como consegues viver num sítio tão deserto?

Teve vontade de berrar que não queria viver ali, que detestava a casa, que tinha medo das paredes, mas nada disse temendo o ridículo.

- Olha, a luz das escadas está acesa, tu lembras-te de tudo, assim nenhum ladrão te assalta!

Tinha plena consciência que apagara todas as luzes e, sem querer, um arrepio que lhe eriçou a pele, fê-la soltar um enrolado suspiro.

Despediu-se sem pressas convidando-os a entrar.

Disseram que já era muito tarde e que ficaria para uma outra vez.

Esperaram enquanto metia a chave na fechadura e entreabria a porta.

Acenaram-lhe, enquanto o automóvel se foi perdendo na escuridão e na chuva.

Fechou a porta com tremenda apreensão.

Benzeu-se, o que já não fazia há muito tempo. De imediato estrondeou um trovão que tudo fez vibrar e abalar a estrutura do edifício como se duma construção de areia se tratasse.

Paralisada pelo terror, sentindo as pulsações fazerem eco nas paredes, tentou, num assomo de coragem, lançar o pé direito para o primeiro degrau. Depois, com esforço, o esquerdo para o segundo.

A lâmpada parecia rir, escandalosamente brilhante, do seu esforço.

Continuou sempre, sempre receosamente a subir…

…Este é o último! – pensou mais aliviada.

De repente olhou para a parede.

Enterrou com força as unhas nas palmas das mãos e soltou um grito que se repercutiu no silêncio.

O Cristo estava escaqueirado em mil pedaços, uns no chão, outros ainda agarrados à parede por onde manchas espessas de sangue encaracoladamente escorriam.

Novo trovão, ainda mais forte que o anterior; e a escuridão tombou em pesada queda.

Sufocada agarrou-se desesperadamente aos comutadores que não obedeciam.

Soluçava histericamente transida.

Lembrou-se de uma lanterna de algibeira que tinha no quarto. Às apalpadelas e tropeções tentou encontrar o caminho.

Sentiu um corpo viscoso e frio que lho barrava.

Umas mãos com o gelo da morte apertaram-lhe a garganta e um odor pestilento e sulfuroso fazia-a desfalecer.

Uma bola de fogo atravessou o patamar fazendo aparecer uma forma humanóide, negra e disforme, que se agigantava à sua frente.

A luz voltou.

Nada mais viu.

Correu para a casa de banho abafando um vómito.

Olhou-se ao espelho:

Uns olhos enormes, raiados de sangue, pendiam de órbitas negras de vazias. Uns dentes, sinistramente brancos despontavam de maxilares descarnados. Passando dedos despidos de tecido pelo ralo e crispado cabelo albino, a escuridão caiu, suspensa de uma lâmpada apagada…

Fernando Magalhães

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