segunda-feira, 21 de junho de 2010

O Sangue de Cristo | Conto

O Verão já caíra de maduro como a seguir verão.
Era época de vindimas em olhares retrospectivos, com toda a tradicionalice que os anos foram apagando, como velas de aniversários consecutivos e onde os parabéns acabaram por se traduzir em paramales impossíveis de recuperar.
Outubro de calor, onde a serenidade se cheirava e os odores da terra inundavam bofes.
Árvores já declamavam estrofes de vermelho envoltas nas partituras de chilreios de pássaros já em migração.
Nessa altura era miúdo, rodeado de escalas gigantescas que criavam o meu universo em números não metricamente mensuráveis, mas que abrangentemente me abraçavam e me faziam sentir pequeno, mesmo puto…
Uma visão de uma nova festa deslizava perante os meus olhos:
- Homens apareciam despertando a manhã com cestos e tesouras, prontos a partir para a guerra da aniquilação das uvas pendentes de esteios com videiras.
Fui acompanhando o resfolegar cansativo do peso nas várias subidas e o assobiar despreocupado da leveza nas descidas.
O lagar ia enchendo nas incontáveis idas e vindas do descarregar dos bagos, que vagamente eram suspensas para beber um copo de vinho que já tinha sido e viria a ser. Cerveja não se comentava ou contava e água só para lavar as mãos dos mais limpos.
Na casa senhorial, afadigavam-se na preparação das refeições, a dona da quinta e as ajudantes improvisadamente iguais, ano, após ano.
A manhã no seu final e o arroz de cabidela, em tacho industrial, borbulhava em mesa colocada no exterior, sem toalha, na sua simplicidade de madeira, onde o caruncho já roía em incontáveis pontos. Guardanapos de branco linho contrastavam com as tábuas encastradamente escuras. Canecas também brancas com populares desenhos azuis de frutos e flores completavam o plinto da refeição.
No final o bagaço sem café, para o rematar da jorna que a tarde faria culminar.
Tudo que as videiras tinham esbarrigado, restava amontoado no lagar de pedra, ao toque badalado e distante das trindades da torre da pequena igreja.
Aqueles que a uva tinham colhido, vestiam agora compridos calções brancos de algodão que arregaçadamente se afundavam nos tintos cachos e abraçadamente os pisavam, não por despeito, mas pela consecução do aforismo final.
Entre canções e risadas, na sala a mesa era posta, desta vez com branca e ricamente bordada toalha.
O bacalhau, cozido com todos e mais alguns, espreitava da avantajada travessa só digna dessas ocasiões.
Enquanto as mulheres da casa permaneciam na cozinha aprontando um leite-creme queimado, um dos homens que se adiantara nas suas abluções finais, sentou-se à mesa. Retirou duas postas de bacalhau e ovo cortado em metades que sofregamente comeu. Não satisfeito na sua gula, continuou a desbravar a travessa fazendo ponte para o seu prato de mais e mais pedaços do agora infiel amigo.
No ruído da moengação, não ouviu os outros chegarem. Apenas as sombras projectadas que toldavam as lâmpadas do candeeiro pregado ao tecto o fizeram levantar os olhos. Outros pares de olhos o fitavam com animosidade estampada nos semblantes cansados.
- Então, não tiras a última posta? – Retumbou uma voz.
Quando o gesto se formou para retirar o último resquício da ceia, um comprido garfo de ferro com afiados dentes, voou empunhado pela voz trespassando a mão que estrebuchando fios de sangue ficou presa à toalha e madeira da mesa.

Só assim descobri que os padres não eram vampiros e que o sangue de Cristo descendia do vinho e não do sangue derramado de uma mão espetada por um garfo, ou um cravo…


Fernando Magalhães

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