segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Senhor dos Gatos | Conto


Tricotava gestos no meio da noite, escondendo o novelo das intenções a pessoas que aparentemente alheias passavam, ou ao trânsito automóvel que de olhos abertos em luz varriam uma rotunda da cidade.
Cirandava no exterior de uma fábrica em ruínas, após ter estacionado o carro, já com uns dez anos marcados de arranhões e tinta preta baça. Contornou o veículo, abriu uma das portas, retirou um saco plástico e olhando à volta e ensaiando passos incoerentes, baixou-se e espreitou para debaixo do automóvel. Desatarraxou a antena que guardou no interior do mesmo, trancou as portas, colocou o saco sobre o “capot “ e olhou em redor. Por vezes encolhia-se encostado ao carro, de braços cruzados, qual animal acossado, quando vislumbrava algum transeunte mais próximo.
Nos momentos em que o silêncio se abatia na quietude esquecida de movimentações, apartava restos de comida do saco plástico e passava-os para um recipiente de “fast-food” sem retorno, ciciando palavras e mergulhando a mão numa falha entre tijolos que entaipavam uma das entradas do degradado edifício.
Então aparecia um par de olhos luminescentes que saltando pelo orifício procuravam ronronando o alimento e, pouco depois, mais dois pequenos gatos se lhe juntavam no festim nocturno tão aguardado.
Desemaranhando toscas carícias nos pêlos mal tratados de sóis e chuvas de abandono, como anfitrião empenhado acompanhou o apetite voraz e serviu leite num prato de papel.
Reparando na lânguida preguiça que a satisfação da abundância provocara, colheu do automóvel uma caixa de cartão forrada com um pequeno cobertor e colocou-a ao abrigo do motor ainda quente.
Provavelmente desejou uma boa noite em linguagem felídea e lá se foi, avenida abaixo, no seu passo bamboleante, absorvido pela escuridão, com a qual candeeiros de luz empalidecida, teimosamente jogavam às escondidas.
E, todos os dias, obstinada e escrupulosamente, se repetiam os gestos semi-escondidos, cúmplices da noite, repartidos em solidões coniventes e preenchidas.

Soube mais tarde que tinha sido jogador de futebol.
Jogou cegamente a bola da sorte até à exaustão, até à aposentação trabalhada, suada e perseguida em outras sortes e outros locais, pontapeando agora o destino sem bola e sem visão clara de futuro.
No fado obscuro desse tempo tinha casado e adquirido uma pequena habitação com a ajuda de prestações pagas a uma instituição bancária, sempre solícita nestes casos.
Nunca teve filhos, mas o amor dele e da mulher pelos gatos completou o equilíbrio ausente e enquanto o espaço o permitia, qualquer gato teve direito a carinho, alimento e educação. Sim, porque isto de educar gatos é como educar filhos: ensinámos-lhes boas maneiras, hábitos de higiene, conselhos para atravessar as ruas, ou desesperamos quando chegam mais tarde a casa perdidos nos telhados de uma relação qualquer.

Eram quatro horas e vinte minutos da madrugada.
Fazia a ronda no edifício de uma multinacional onde o tinham contratado como vigilante.
O telemóvel vibrou.
Do outro lado disseram-lhe que a mulher estava no hospital e que uma fuga de gás tinha provocado um incêndio em casa…

…Da casa apenas restavam as paredes exteriores calcinadas.
A mulher falecera carbonizada.
Os gatos também.
Solitário, sentiu que ser homem era estar para além dos outros homens, para além da dor, da obsessão da vida, da loucura e da exigência social.
Constatou com a amargura da perda, que os gatos que tivera nada lhe exigiram em troca, apenas o carinho e a veracidade de ser humano.
Hoje gostaria de trocar essa condição de humano e esquecer tudo: falsidades, sociedade, hipocrisia, promessas, materialismo frívolo, egoísmo, guerra e imbecilidade.

No meio da avenida, falando com o arrumador de automóveis para enganar o silêncio da solidão que o persegue, discursa a moral dos sentidos para a imoralidade dos que o apontam sem sentido e sem razão.
E, tecendo carinhos e entretecendo firmes vontades que o fútil lugar comum teima em reprimir, continua a alimentar os vadios gatos de rua, perdido nos gestos que esconde e que inventa, não por querer, mas por entender que serão sempre gestos que a pluralidade dos homens nunca compreenderá e apagará para sempre da memória.

Fernando Magalhães

1 comentário:

  1. ...e foi assim que alguém rompeu a solidão, tornou-se companheiro de si mesmo e encontrou um grande amigo...
    Sempre apreciei este teu conto.
    Um abraço
    Clara

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